O Olho que tudo vê (Conto)


Naquela manhã, abri os olhos e percebi estar diante de um olho que me observava o tempo todo, como se eu estivesse sendo filmado por fora e por dentro. Eu era o protagonista daquele filme banal e o olho, o único espectador.

O olho vigilante viu-me levantar, executar os hábitos de higiene, vestir-me e ir tomar o café da manhã. Antes de chegar à cozinha, o telefone tocou. Era uma voz de mulher “presenteando-me” com um novo cartão de crédito, fantástico, supervantajoso! Depois de dez segundos, eu já não escutava mais nada, tamanha a irritação que em mim se levantou! Já era a centésima vez que ouvia esse tipo de proposta, logo cedo, antes mesmo de tomar o café da manhã. Percebi que ia jogar toda a minha irritação em cima da moça, mas, em vez disso, interrompi aqueles pensamentos, dizendo a mim mesma: “De onde vem essa irritação? Sei que a irritação não sou eu, senão ela não poderia estar sendo percebida por mim!” Agradeci, então, o “presente” que a moça me ofertara, dizendo não estar nem um pouco interessada nele, e desliguei o telefone. O olho que tudo vê, a tudo via. Respirei profundamente e uma sensação de leveza começou a alastrar-se em meu peito.

Sempre observado pelo observador, caminhei até a cozinha. Era folga da empregada. Abri a geladeira e notei que o requeijão, imprescindível em meu café da manhã, tinha acabado. “Droga!” - eu disse alto - “a tonta da minha empregada esqueceu de me avisar que...” Interrompi-me nesse exato momento! O olho via a raiva tomar forma dentro de mim. Viu que uma força poderosa invadia meu peito. Percebi, então, que a raiva e os pensamentos que a alimentavam pegavam uma força preexistente em meu ventre e fabricavam-se por si mesmos, automaticamente. A raiva e os pensamentos não nasciam de mim, eles simplesmente se faziam em mim. Pude notar ainda que a verdadeira origem da raiva estava na minha fome. Na noite anterior eu jantara muito pouco. Por isso, amanheci com o estômago vazio e tudo que me impedira de satisfazer plenamente essa necessidade básica tinha-se transformado em irritação. Primeiro foi o telefonema, depois, a falta do requeijão.

Com o olho sempre me observando, caminhei até a porta dos fundos, e recolhi o jornal. Li: “Nossa indústria perde corrida para países emergentes”. Que má notícia, pensei. E meus pensamentos foram se desencadeando da seguinte forma: “Meu Deus! Nosso país está ficando cada vez mais pobre, e o pior é que o povo só elege pessoas incompetentes para dirigir nosso destino. O que será do meu futuro? Neste país, não se tem a menor segurança quanto ao futuro! Quantas denúncias de corrupção no governo... Que vergonha! Eles roubam descaradamente nosso dinheiro e não podemos fazer nada!” E por aí fui. 
De repente, vi que aqueles pensamentos formavam-se em minha mente, sem que eu tivesse a mão no jogo, produzindo uma sensação de medo e insegurança! Não havia nenhuma reflexão verdadeira de minha parte a respeito do futuro da minha vida. Perguntei-me, então: “O que, na verdade, comanda o meu futuro? Seriam realmente os governantes eleitos?” E a resposta que surgiu foi: “Na verdade, a sua vida é comandada pela ansiedade, pelo medo e pela falta de clareza”. E o olho, a tudo via.

Nesse momento, olhei pela janela e vi o sol esconder-se atrás das nuvens. Respirei fundo mais uma vez e percebi claramente que, em muitos momentos da minha vida, a minha clareza interior, tal como o sol, fica escondida atrás de nuvens de pensamentos comandados por algo que não é, de fato, eu! Que sensação de estranheza e alívio, ao mesmo tempo!

Virei a página do jornal e vi, finalmente, uma boa notícia. No mesmo instante, porém, olhei, de relance, para a foto de um moço bonito que me transportou para um mundo de divagações. Lembrei-me que depois de ter trocado intensos momentos de afeto com minha companheira, ela olhara com interesse e sorrira para um moço parecido com aquele.
E o devaneio ocupou meus pensamentos com toda a sua força. E o olho viu uma força poderosa, nascida no meu ventre, vinda da minha sexualidade, disparar uma onda de ciúme, que agora ameaçava transformar-se em fumaça negra. Interrompi a leitura da boa notícia. Na verdade, nem saberia repetir o que li, pois as associações que percorreram minha mente, por causa da foto, impediram-me de registrar qualquer frase do texto. A percepção desse fato fez com que o devaneio se interrompesse. Imediatamente, o olho que tudo vê percebeu que a força vinda do meu ventre tomara conta de mim e estava quase me sufocando. Fechei os olhos e, por instantes, lembrei-me do ser amado e uma doce ternura começou a dissolver a fumaça negra. Percebi o quanto a força da sexualidade, muitas vezes, faz de mim um joguete nas mãos do ciúme e da dor que ele provoca. Que coisa mais interessante, a relação homem-mulher! Em um instante, ela é a porta do inferno; em outros é o portal da redenção, dependendo apenas da atitude que temos diante dela.

Depois de alguns minutos, abri os olhos e olhei a paisagem lá fora. Vi que garoava, e acolhi aquela doce chuva fininha. O meu peito começou a irradiar um suave calor. Levantei-me e olhei o relógio. Estava atrasado para um compromisso de trabalho! Peguei a bolsa e fui até a garagem. Entrei no carro, procurando conservar o bem-estar que sentia. O ar entrava em minhas narinas e saía suavemente , e meu corpo todo respirava. Uma despreocupada leveza apoderou-se de mim. O olho olhou para dentro do meu peito e viu uma doce alegria ali instalada.

Dirigi calmamente. No topo da ladeira, um terrível engarrafamento! Um ônibus fechou um carro e o motorista do carro, nervoso, pôs a cabeça para fora, e ameaçou o motorista do ônibus com gestos e palavras. Uma criança fazia malabarismos diante de mim, esperando ganhar algumas moedinhas. Um velho senhor atravessou a rua com o olhar embaciado pela tristeza. Uma criança no carro vizinho, com olhos brilhantes, sorriu para mim. Do outro lado da rua, uma árvore florida, portadora de grande beleza, balançava suas folhas. Buzinas, ruído de avião, pássaros cantando... Uma só vida, uma única força permeando tudo e todos.

Um suave sorriso apareceu no meu rosto, ou melhor, no rosto do protagonista do filme. Seus olhos cintilaram e ele continuou seu caminho, ao lado do olho que tudo via, seu verdadeiro “Eu”.

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